Comprovando que o crime compensa e, mais do que isso, é estimulado, a informação de que cerca de 85% das barragens do país não contam com responsáveis técnicos e legais devidamente identificados foi virtualmente ignorada pela mídia e pela sociedade brasileira. Os dados são da própria Agência Nacional de Águas, publicado no Relatório de Segurança de Barragens (RSB) 2016 na última semana. Das 22.920 barragens, apenas em 3.174 é possível aplicar todos os instrumentos previstos na Lei e os regulamentos decorrentes, permitindo a completa fiscalização de sua segurança, segundo o que afirma a própria ANA.
Mais: apenas 3.691 barragens foram classificadas quanto à Categoria de Risco (CRI), sendo 1.091 de alto risco e somente 4.149 foram classificadas quanto ao Dano Potencial Associado (DPA), o que inclui perda de vidas humanas, sendo 2.053 com DPA alto. Destas, a maioria com CRI alto encontra-se no Nordeste, preponderantemente na Paraíba (404), Rio Grande do Norte (221) e Bahia (204). O quadro repete-se naquelas com DPA crítico, localizadas na Bahia (300), no Rio Grande do Norte (255) e na Paraíba (219), mas também no Rio Grande do Sul (475) e em Minas Gerais (245).
Pior: 695 barragens são classificadas simultaneamente com CRI e DPA altos, estando com grande possibilidade de danos graves – incluindo mortes e impactos econômicos, sociais e ambientais – a qualquer momento. Ou seja: o quadro é seríssimo e prova que o maior crime ambiental da história do Brasil, que completa 2 anos em 05 de novembro próximo, cometido pela Samarco/Vale/BHP, não significou melhora alguma na fiscalização e no controle.
O Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SNISB) foi implantado pela ANA somente em março deste ano e o Manual do Empreendedor sobre Segurança de Barragens, que contém oito volumes com orientações e diretrizes gerais aos empreendedores, foi publicado somente em 2016. Ambas as ações mostram-se absolutamente ineficientes diante do desafio presente.
Chama a atenção que, das 29 entidades efetivamente fiscalizadoras de segurança de barragens no Brasil – sendo três federais e 26 estaduais – apenas 9 responderam ao pedido da ANA para que “listassem as barragens que, na sua visão, mais preocupam por possuírem algum comprometimento estrutural importante que impacte a sua segurança”. As 25 barragens citadas, sobretudo no Nordeste, representam um universo ínfimo ante o real problema.
“Verifica-se que não só anomalias graves comprometem a segurança destas barragens, e que não necessariamente uma barragem deve ter Categoria de Risco alto para merecer atenção especial dos fiscalizadores”, afirma o relatório, reconhecendo que o espectro vai muito além destas.
O caso de Mariana, em que ninguém foi efetivamente punido cerca de 2 anos após o crime, mostra que mesmo quando o responsável é notório a justiça não consegue – não quer – cumprir com o seu dever, os 85% de barragens sem responsáveis legais e com inúmeros subterfúgios revelam um descaso completo digno da pior herança burocrata, plutocrata e oligárquica do Brasil.
Nos últimos dois anos foram relatados 6 acidentes e 17 incidentes com barragens.
Recursos escassos
O dinheiro disponibilizado para ações de operação, manutenção e recuperação de barragens também patina: foram liquidados apenas R$ 5 milhões dos R$ 116 milhões disponibilizados, sendo o valor de 2016 metade do realmente gasto em 2015. A resposta do governo federal é, na prática, diminuir os investimentos mesmo com a piora da situação.
Não bastasse o descaso da União, apenas 5% dos valores considerados necessários para segurança de barragens foram aplicados pelos empreendedores segundo a resposta de 8 entidades.
Pouco mais da metade são autorizadas a funcionar
O relatório da ANA reconhece que apesar dos avanços quanto à classificação e regularização de barragens, o conjunto de 3.174 barragens já enquadradas na Lei ainda é uma fração do total de 22.920 barragens identificadas. “Portanto, é grande o número de barragens sem identificação do empreendedor, sem a devida autorização dos órgãos competentes, e sem a devida avaliação quanto ao enquadramento na Lei”, reforça.
Das 22.920 barragens, 18.761 ainda não foram classificadas quanto ao dano potencial, e 19.229 ainda não foram avaliadas quanto à categoria de risco. Além disso, apenas 12.590 (ou 55%) possuem algum tipo de ato de autorização (outorga, concessão, autorização, licença, entre outros), estando, portanto regularizadas.
A Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) foi estabelecida pela Lei Federal nº 12.334, de 20 de setembro de 2010, ainda no governo Lula. A PNSB caracteriza como empreendedores os agentes privados ou governamentais com direito real sobre as terras onde se localizam a barragem e o reservatório ou que explore a barragem para benefício próprio ou da coletividade. A Lei atribuiu a esses atores a responsabilidade de garantir a segurança das barragens.
Sem plano e sem preparo
Somente 594 planos de segurança de barragens foram elaborados até o momento, uma fração do total. No que se refere aos Planos de Ação de Emergência – PAEs, o quadro é ainda pior: os fiscalizadores informaram que somente 336 barragens possuem tal instrumento, sendo 92% delas referentes a contenção de rejeitos de mineração.
DNOCS, CEMIG, Vale S/A e Usina Delta S/A são as que possuem a maior quantidade de barragens, correspondendo a usos múltiplos, como geração de energia elétrica, disposição de rejeitos de mineração e resíduos industriais, respectivamente.
Das quase 23 mil barragens, apenas 642 tiveram inspeção realizada.
Ações mais do que necessárias
Melancólico, o relatório assume que é necessária uma maior mobilização dos diversos atores envolvidos (fiscalizadores, empreendedores, sociedade civil, CNRH, instituições de ensino, pesquisa e associações técnicas relacionadas à engenharia de barragens, Defesa Civil, entre outros).
Segundo a ANA, “são necessários avanços na atuação dos fiscalizadores, em termos de: regularização de barramentos (emissão de outorgas, licenças ambientais, etc.), construção e refinamento dos cadastros, em especial para as barragens do setor elétrico; inserção de barragens no SNISB; classificação das barragens; regulamentação da Lei nº 12.334/2010; e ações de fiscalização in loco e documental. Não menos importante é realizar investimentos para conservação, operação, manutenção e recuperação de barragens, e elaboração dos Planos de Segurança de Barragem”.
Acesse o documento completo e veja o detalhamento dos dados aqui citados.
Prezado Maurício,
Concordo com a denominação de “crime” para o episódio de Mariana e que a Justiça usualmente demora para chegar às vias de fato e punir (ir)responsáveis.
No entanto, parte significativa das barragens do estudo são barragens de água, que não têm a carga sólida dos rejeitos a pressionar o maciço. Neste caso, colocando tudo no mesmo balaio, confunde-se na cabeça do leigo todos os assuntos.
Sou engenheiro de minas, mas entendo que tudo tem de ser, obrigatória e inevitavelmente, sustentável para que tenhamos algum futuro. Pressuponho que você, que acompanha o assunto, também entenda que a mineração é fundamental para o conforto da vida moderna.
Juntando as pontas, considero adequado, então, identificar o percentual de barragens de cada tipo, para haver um ponto de partida para eventuais discussões sobre quais são potencialmente mais críticas e mais danosas conforme o tipo.
Por fim, algo que até o momento ninguém mencionou é a responsabilidade dos municípios: deve haver, de um modo ou de outro, um zoneamento, indicando as áreas de risco, sejam encostas, sejam vales inundáveis, sejam jusantes de barragens. O povoado do talvegue onde se instala uma barragem deveria ser alvo de investimentos da responsável pela obra para sua remoção para lugar mais seguro, mas a prefeitura deveria, por seu turno, desestimular o aumento demográfico da região.
Abraço!
Marcelo, muito obrigado pelos apontamentos, sem dúvida de grande valia considerando seu conhecimento de causa. Registro, no entanto, que 85% é um número altíssimo para o total de barragens, somado ainda ao investimento de míseros 5% para ações de segurança, o baixíssimo número de inspeções e todos os problemas crônicos que o relatório reconhece, formam realmente um quadro preocupante, sem desconsiderar a responsabilidade dos municípios, central e decisiva. Abraços.